segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Estação

Nossos olhos se cruzaram somente duas vezes. A primeira quando o observei descendo as escadas da estação, a caminho daquele trem movimentado, a segunda quando ele me observou saindo deste mesmo trem a caminho de minha casa.

Sentei-me em um dos bancos da estação e peguei um livro de minha bolsa, teria que esperar o tempo passar até que o relógio marcasse seis horas da tarde. Eu não o esperava ali, não esperava que ele descesse no mesmo momento e se sentasse ao meu lado. O olhei brevemente, agora pela terceira vez e vi sua aliança no anelar esquerdo.

Talvez fosse somente um anel, tentei me convencer. De fato não era, estava ali sozinha com alguém que esperava sua esposa. Imaginei-me nesta situação, olhei para minha mão esquerda visualizando um anel dourado em meu dedo anelar. Fiquei a observar minha mão por minutos sem saber o motivo exato para tal.

Eu já estava me aproximando dos trinta anos e nada tinha encontrado. Meus poucos romances terminaram em tragédias shakespearianas, o que fez minha ideia de amor se transformar, pouco a pouco, em puro platonismo, algo que eu jamais alcançaria e que, talvez, devesse simplesmente me contentar com um relacionamento que me proporcionasse estabilidade e compreensão de ambos os lados. Se isso se mostrasse mais fácil de adquirir, provavelmente não estaria por trás de minhas pastas de trabalho, esperando o carro de minha empresa me buscar nesta estação.

Quando simplesmente parei de contemplar minha mão nua, voltei a olhá-lo e minha mente começou a criar pequenas fantasias. Como deveria ser a sua mulher? Era loira, morena, ruiva? Talvez fosse alta porque definitivamente ele era um homem alto, mas talvez por esse mesmo motivo ela fosse baixa, porque é fato que muitas pessoas altas procuram em seus parceiros este oposto. Talvez fosse uma dona de casa, daquelas com um avental sempre envolta de sua cintura e um sorriso familiar estampado no rosto. Talvez fosse uma mulher de negócios, assim como eu.

Quando ele chegava cansado em casa, ela lhe buscava com um copo de uísque, exatamente de sua preferência, com um charuto e um beijo adocicado, informando-lhe que em breve servirá o jantar. As crianças, provavelmente três, sairiam correndo atrapalhadas, esbarrando em tudo e rindo deliciosamente para abraçar as pernas do pai. A mais nova lhe pediria colo e no momento que ele se sentasse em sua poltrona, os outros dois sentariam em suas coxas e lhe pediriam para que lhes contassem histórias sobre a vida adulta.

Ou então ele não tivesse filhos. Sua mulher o buscava do trabalho todos os dias, afinal ela era a dona daquele carro, eles mal se falavam quando estavam a caminho de casa, entravam e pediam comida tailandesa pelo telefone. Ele se banhava enquanto conta as histórias do trabalho que não agradam a sua mulher que simplesmente age entediada com todo o monólogo que, para ele, parecia empolgante.

Quando notei, ele agora me observava intrigado. Não era de se estranhar, afinal eu estava o encarando durante tanto tempo que provavelmente ele pensasse que havia algo errado por ali. Abaixei imediatamente minha cabeça e desviei meus olhos para o chão. Tentei voltar a ler, mas as linhas pareciam se misturar, minha concentração não estava mais ali. Estava perdida em minha imaginação. Eu creio que provavelmente estava tentando imaginar como seria minha própria vida caso fosse casada, o que me tornava ainda mais excêntrica do que provavelmente era. Quando voltei a levantar minha cabeça, pronta para me desculpar por esse momento totalmente rude e deselegante de minha parte, não o encontrei mais.

Dentro de minha mente perdi o sentido de vida real, estava tanto em minha imaginações e fantasias que devo ter perdido o momento que ele avistou o carro que iria buscá-lo. Olhei para frente e me surpreendi. Lá estava o carro que ia buscá-lo, mas não era sua mulher que estava dirigindo, era simplesmente um motorista qualquer, assim como o que provavelmente iria me buscar.

Fechei meu livro, era inútil tentar retornar aquela leitura, olhei para o relógio em meu pulso, ainda teria mais trinta minutos para esperar. Trinta minutos dentro de minha mente, ou devo dizer dentro da mente do próximo que se juntar a mim neste banco? Não sei ao certo, mas penso que tenho tempo para decifrar este pequeno enigma.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Efêmero e o Perene

A máquina de escrever estava parada, o verde que a cobria se transformara em preto e cinza pelo pó que se espalhava pelas teclas e suas partes de plástico. A tinta já estava seca e as fotografias jogadas encima da escrivaninha mal habitada. O livro completo tinha sido esquecido, guardado em uma pasta azul grossa, com sua antiga caneta tinteiro ainda aberta pelas anotações e rabiscos de páginas.

Ele estava a sete palmos, longe de sua mulher que estava a outros sete palmos em outro cemitério distante de lá. A biblioteca lotada de livros de filosofia, matemática, arte e política comunista, não existia mais e os livros foram doados e jogados fora, somente alguns foram guardados. Toda uma vida fora desperdiçada e esquecida. Lembrada em seu aniversário de vida ou de morte.

O piano que durante décadas fora tocado diariamente, havia sido vendido. A família não queria guardar recordações, ou achavam que o dinheiro que sessenta anos de inteligência podiam oferecer era muito mais importante que descobrir como essa inteligência fora adquirida.

O tempo havia passado, a morte já estava ao seu lado por quase quinze anos. As lembranças de uma vida se tornara, mais uma vez, efêmeras. Esquecidas em fotografias, esquecidas em outras vidas efêmeras. E talvez a necessidade de buscar conhecimento não fosse tão importante quanto se mostra ser, pois esse conhecimento será esquecido em livros guardados dentro de pastas azuis e anotações feitas por canecas tinteiro velhas.

Há uma tentativa eterna de transformar lembranças para que as façam serem presentes em mentes futuras. Procriação não é somente um modo de manter seu sangue, é principalmente um modo de manter seu passado vivo, seu orgulho intacto, imaginar que seus livros escritos, árvores plantadas e fotografias tiradas não se tornem mais parte de uma vida passageira.

Mas, por infelicidade do destino, não se pode contar que suas procriações realmente desejem manter sua existência presente e viva, talvez eles simplesmente o queiram a sete palmos abaixo da terra, ou transformado em pó que será jogado em plantas, rios, lagos ou somente guardados encima de uma lareira.

Você se torna descartável, se torna uma lembrança distante ou uma curiosidade juvenil de sua neta, esta que sobe encima de uma cadeira bamba para alcançar agora a caixa de sua máquina de escrever verde musgo. Esta que abre a pasta azul e encontra seu livro intocado, procura seus poucos livros guardados por sua nora que lhe quis presente e não a sete palmos. Sua neta busca notícias suas, busca sorrisos em fotografias velhas, busca seus artigos filosóficos, teorias shakespearianas, seus motivos comunistas.

O que mais lhe espanta, dentro de sua vida efêmera, é que uma garota que mal lhe conheceu antes dos sete palmos, procurasse com tanto desejo em transformar sua vida em algo perene. Talvez ela espere que sua própria vida não tenha o destino que a sua lhe trouxe. Talvez pelos seus atos ela consiga fazer que suas procriações a torne também em eterna. Ou então ela simplesmente possui uma curiosidade peculiar sobre sua vida e suas intelectualidades perdidas.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Livro aberto

Essa história de Halloween brasileiro não existe, é simplesmente americanismo. Mas às vezes parece que a bruxaria acontece além dos filmes do Freddy Krueger que vimos à meia noite no SBT. Dia 31 de Outubro de 2009 significou muito mais para mim do que qualquer outro dia das bruxas. Foi o dia exato que descobri pela minha mãe que tinha contraído HPV. Lembro ainda que era um sábado e eu estava me preparando para sair com meu namorado da época para ver umas apresentações especiais de dia das bruxas na Casa das Rosas.

Por pouco não desisti dessa ideia, só não desisti porque minha própria mãe disse que não tinha mais motivo para se desesperar, o problema já tinha sido feito e não adiantava nada ficar se lamentando em casa sozinha.

HPV é o tipo de doença sexualmente transmissível que dá susto. O nome lembra muito o temido HIV e sempre que você conta para alguém que tem HPV, a pessoa em questão dá um pulo pra trás pensando que logo mais vai pegar só por respirar o mesmo ar que você. Confesso que quando minha mãe disse “você tem HPV” eu na hora escutei “HIV” e quase desmaiei na frente dela.

HPV é bem mais simples, mas também não tem cura total. É o tipo de doença que você vai ter que lembrar pro resto da vida, qualquer gripe mais forte, qualquer coisa que faça sua imunidade baixar, pronto. Lá está ela de novo te tirando dois meses para tratamento. HPV também não é por sangue, por isso que, depois de muito tempo pra me acostumar com o fato, não tenho dificuldade nenhuma de falar que tenho. É contato e, é claro, só se contrai caso faça sexo sem camisinha.

Agora o que fez uma mulher como eu, de classe média alta, estudante de jornalismo, estagiária, com boa educação, transar sem camisinha? Eu fico pensando nisso até hoje e não consigo arranjar uma explicação boa o suficiente. O que posso falar é que quando contrai HPV, tinha somente 16 anos de idade, com meu segundo namorado e foi a primeira vez que não tomei cuidado com essas coisas.

E ai que você pensa que uma vez sendo descuidada pode ferrar muito mais do que você pensa. Eu sei que agora vocês estão fazendo as contas, disse que contrai com 16 anos, mas só descobri com 19. A HPV pode ficar lá na dela durante anos sem aparecer em nenhum exame e quando você fica com resistência baixa, anos depois, ela decide aparecer.

A primeira coisa que fiz quando descobri a doença foi ligar para meu recente namorado, ele veio correndo pra minha casa, afinal eu estava chorando sem parar não sabendo como seriam as coisas a partir daí. Ainda não tinha tido nenhuma relação sexual com ele e, sinceramente, estava ansiosa pra isso e agora só conseguia pensar naquela frase de bêbado envolvendo com o lado sexual: “nunca mais transo”. Depois ele me perguntou se queria que ele ligasse para meu ex-namorado para avisar sobre a doença.

Não, isso era algo que eu queria fazer. Liguei e expliquei tudo, não tinha motivo para culpá-lo, como todos meus amigos queriam que eu fizesse, afinal a decisão de fazer sexo sem responsabilidade não foi só de um de nós, foi de ambos. Se eu não quisesse na época, simplesmente tinha parado e falado pra fazermos em outro dia, quando tivéssemos proteção.
Na outra semana eu já estava com a minha ginecologista resolvendo esse problema. Tive sorte de descobrir logo, a HPV ainda estava no começo e o tratamento não seria tão complexo. Ela até chegou a me perguntar se eu queria esperar para ver se ela se curava sozinha, mas ai era o risco de ela ficar mais grave e se tornar em um câncer. Descobri também que 70% das mulheres sexualmente ativas contraem HPV, mas claro que isso não me deixou nada contente, preferia ser muito mais os 30% que não tem.

Sobre o tratamento? Era um pouco longo. Eu ia lá uma semana, ficava naquela posição desagradável, ela colocava ácido onde tinha as verrugas da HPV, no meu caso no colo do útero, por isso não doía nada, depois ela colocava uma pomada para cicatrizar, ficava uma semana passando-a e uma semana deixando a pomada sair de vez do meu corpo. Depois eu voltava lá e fazia a mesma coisa. Isso durou 2 meses, lembro que minha última consulta foi duas semanas antes do fim do ano.

Sobre as consequências da HPV, ela me ajudou um pouco. No começo eu tinha perdido totalmente a libido, para a infelicidade do meu namorado na época, não tinha vontade de fazer nada enquanto ainda estivesse em tratamento. E nem podia. Pelo menos eu tinha essa desculpa para dar a ele.

Mas ela realmente me ajudou, fiquei paranoica sobre sexo e por isso, hoje em dia, você pode encontrar uma camisinha em cada bolsa minha. Na que está aqui do lado não tem só uma, tem umas três. E também notei que eu podia me libertar um pouco de algumas amarras da sociedade. Hoje em dia não tenho mais vergonha de falar do que eu tenho, tanto que estou me expondo aqui para contar essa história. Hoje em dia minha libido voltou e eu me sinto livre para fazer qualquer coisa, só que com uma responsabilidade bem maior. A responsabilidade de uma mulher de classe média alta, estudante de jornalismo, estagiária, com boa educação.

O mais irônico é que no dia 31 de Outubro desse ano peguei meus exames para ver a quantas estava a HPV. Bom, ela está na dela, quietinha e se depender de mim, ela não volta tão cedo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Nos Limites do Bullying

Eu olhei para baixo e meu medo de altura não apareceu. A água parecia agitada, talvez o impacto do meu corpo fosse forte o suficiente para que eu não sofresse muito com a queda. Meus olhos ardiam e meu coração parecia que ia sair pela boca. Queria entender porque fizeram isso comigo, queria entender porque não posso ser normal.

Coloquei uma perna para frente, pulando o muro que me separava da ponte, meu corpo começou a tremer, senti uma leve vertigem. Segurei-me por um momento nas grades e me abaixei, olhei para água, ela tinha um cheiro tão fétido que me dava náuseas, conseguia ver coisas espalhadas naquela água, sacos plásticos, restos de alimentos e animais em decomposição.

Ontem minha mãe disse que minha homossexualidade era somente um modo de torturá-la e que eu devia realmente odiá-la para fazer isso. Ela acha que eu escolhi essa vida, como se eu tivesse pensado que ser contra os parâmetros da sociedade fosse divertido, como se eu gostasse de ser chamado de menina e de ser espancado pelos meus colegas de escola. Se eu pudesse escolher preferia ser aqueles marmanjos que me batiam quando eu era criança. Eles recebiam broncas e suspensões, mas depois seus pais davam tapinhas nos ombros dizendo como eles eram machos por ter espancado uma “bichinha”.

Ela me pede filhos todos os dias. Diz que com a minha idade meu pai já era o homem que é hoje. Já cheguei a tentar mudar isso, já cheguei a tentar virar uma pessoa que alguém pode considerar normal. Namorei mulheres, mas sempre acabava ferido, elas esperavam mais de mim do que eu poderia oferecer. Fico pensando se caso eu desse um filho para minha mãe ela seria feliz, caso eu fosse o homem que ela desejou ela pararia de me excluir do resto da família e fazer com que meus irmãos sigam o mesmo caminho.

Tenho dois irmãos. O mais velho mal olha para minha cara, diz para a mulher que eu tenho manias estranhas. "Manias". Meu irmão mais novo escutou tudo que lhe foi dito e me detesta porque quando estava no colegial ele também era espancado. "Irmão do boiola". Excluíram-no durante tanto tempo e todos diziam que era culpa minha. Hoje em dia ele é homofóbico, daqueles que se encontra um homossexual faz coisas realmente erradas. Eu sei que é culpa minha e talvez eu mereça isso.

E não. Esse não foi o meu único problema. Definitivamente foi o mais grave e o que me faz sofrer até hoje. Mas não, eu era ainda inteligente de mais e, supostamente, feio de mais para conviver em grupo. Queria explicar como as coisas funcionam para pessoas que são deixadas de fora. Quando não se tem beleza, sexualidade ou bom humor para se abraçar, nós nos abraçamos em estudos.

Como brincar sozinho era tão rotineiro para mim, ler se tornou um dos meus maiores prazeres. Eu era ainda pré-adolescente quando me enfiava no meu quarto e pegava a maioria dos livros da biblioteca de meu colégio. Lia vários e de todos os autores. Amava assuntos que ninguém nunca se interessou e me focava em meu estudo como se fosse a única coisa que realmente me importasse. O que, de fato, não era mentira.

Isso foi algo que eu descobri logo. As pessoas temem as que são mais esforçadas que elas, é como se fosse um xingamento receber uma nota alta ou um prêmio. Aí te julgam. E aí te excluem. E sabe o que me era mais frustrante? Era porque nem meus professores daquele tempo me protegiam. Eu não sabia mais para onde correr! Minha família me excluía, meus colegas me excluíam e até meus professores me excluíam. Tornei em minha adolescência um homem agressivo, afinal se ninguém me defendia, tinha que me defender de meus próprios modos. E mudei, não era mais feio, mas meu psicológico já tinha sido mudado o suficiente para não me achar bom.

A pressão se tornava cada vez maior e agora eu trocava de colégio toda a hora porque me defendia das agressões físicas e verbais. Era sempre o culpado. Uma vez três garotos me pegaram na classe desprevenido e me jogaram contra a parede. Socaram onde conseguiam encontrar, chutavam minha costela e me ofendiam de todos os modos possíveis. Não conseguia me defender e quando consegui me levantar e agredi-los logo foram embora e avisaram a coordenação do colégio. Mesmo com meu corpo todo estourado acreditaram neles e me expulsaram. Minha mãe os defendeu e disse que eu era frouxo de mais para viver ali.

Olhei novamente para o abismo de água embaixo de mim. Meus olhos agora ardiam com as lágrimas e não mais pelo odor. Essa é a segunda vez que tento suicídio. A primeira foi com remédios, mas meu namorado me encontrou antes que eu conseguisse algo. Fui internado e depois me colocaram com uma série de psicólogos e psiquiatras. Desta vez eu espero que seja definitivo.

Espero que ele não sofra. Meu companheiro é um dos poucos que sempre me apoiou. Ele é um homem forte, já vivido e que diz nunca ter se importado com o preconceito que recebeu. Mas já o vi lamentar quando o demitiram do trabalho pela sexualidade dele. Ele sempre se recupera, ele é mais resistente que eu.
Debrucei meu corpo para frente, me segurando em somente uma mão, é só soltar os dedos que eu caio. Só isso. Em um movimento acabo com essa dor que me corrói diariamente.

Hoje meus colegas de trabalho colocaram um vídeo na internet e jogaram em um site de relacionamento. Não sei como conseguiram me filmar naquele estado, eu nunca gostei de aparecer em situações que considero incrivelmente pessoais. Não sei quem os ajudou, mas agora todos do meu trabalho sabem o que eu faço em meu tempo livre. Sabem com os mínimos detalhes e todos estão debochando de mim agora mesmo.

Estou fazendo isso porque não suporto mais me olhar no espelho. Sinto-me sujo e me considero repulsivo. Não sei mais o que é amar a si mesmo, pois a cada dia alguém consegue destruir mais esse sentimento. Não consigo mais confiar, talvez tenha sido meu próprio companheiro que tenha feito isso comigo. Não sei. Agora não me importo mais. Vou soltar um dedo de cada vez até que não aguente mais o peso do meu corpo. Talvez em outro lugar eu me sinta livre. É o que eu espero.

Dedicado a Juliana Lindo. Uma mulher que superou e supera todos os preconceitos.

domingo, 3 de outubro de 2010

A Náusea Sartreana

Há temos que não escrevo realmente em um papel. Amassado, com manchas recentes de café, mas um papel mesmo assim. Às vezes penso que perdi essa capacidade. A de deixar minha mente fluir vagarosamente em uma folha, arranhada por uma caneta qualquer. Minha mente anda poluída e rápida de mais, não tenho mais paciência de uma criação lenta como a escrita.

Faz tão frio que minha mão não corresponde aos chamados e me canso rapidamente. Penso em acender um cigarro, mas se fizesse, não conseguiria escrever, preciso segurar o papel com força enquanto o faço.

Vejo de dez em dez minutos um homem passando, correndo com pouca roupa. Sinto um frio inimaginável só de olhá-lo, talvez o exercício físico não o permita sentir a baixa temperatura, de fato o meu tipo de exercício, o exercício mental, não tem essa capacidade.

A fonte que sempre costumo observar quando paro para ler nesta praça, começa a me irritar, o barulho da água correndo é repetitivo. Hoje colocaram livros na fonte, livros abertos. Supostamente é algum tipo de exposição pós-moderna que eu não vou e nem pretendo entender. Considero, sim, um desperdício literário. Cultura molhada como a minha folha molhada de café.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

4:00

 Acordo todos os dias com aquele mesmo pássaro cantando às quatro horas da manhã. Sempre me esqueço de fechar a janela e o vento frio deixa metade do meu rosto como gelo. Só metade, porque a outra metade está afundada nos travesseiros. Eu fico pensando porque meu despertador ainda não tocou e o motivo do breu que vejo na janela. Minha mente ainda pensa, perdida entre o sonho e a realidade - irritante realidade que poderia simplesmente sumir às vezes. Na minha concepção já se passam das seis da manhã e eu devo me levantar, mesmo que todos saibam que eu realmente não levanto antes das sete e quinze, quando me restam só quinze minutos para me vestir e sair. Motivo principal pelo qual meus cafés da manhã foram instintos. Estico os braços, tateando por algo, derrubo meus anéis que estão na ponta da mesa, derrubo um pacote de bolachas do dia anterior que me esqueci totalmente de jogar no lixo, bagunço os papéis que deixei separados e organizados antes de dormir. Derrubo, enfim, o celular no chão, ligando-o para ver as horas. Quatro da manhã. Xingo aquele pássaro maldito, espero que ele coma uma fruta estragada. Viro-me na cama, caçando as cobertas que derrubei no meio do processo, estou tão enrolado, com o lençol enrolado em minha perna direita, o primeiro cobertor jogado ao chão, o segundo preso em minha perna esquerda. Sinto como se minha cama tivesse se transformado em um monstro enquanto eu dormia e que estava já em seu processo de alimentação, pronta para me devorar. Talvez devesse agradecer o pássaro, pensando deste modo. Talvez ele tenha me salvado de uma morte brutal. Quanta besteira. Desenrolo tudo que devo desenrolar, deito novamente de bruços, virando meu rosto por um lado. Desconfortável. Viro-o então para o outro. Ainda não está confortável o suficiente. Viro-o novamente. Desisto, durmo assim mesmo. Deixe que a cama me devore.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Beija-Flor


Pra que mentir
Fingir que perdoou
Tentar ficar amigos sem rancor
A emoção acabou
Que coincidência é o amor
A nossa música nunca mais tocou.

O atraso do relógio fazia minha mente girar. Corria mais que meus músculos permitiam, queimava o cigarro em minhas roupas pelo movimento rápido de meus braços e quando cheguei, descobri que não tinha mais motivo para correr. Sentei-me ao chão e finalmente nicotinei meu corpo sem a pressa de um pulmão ardido. Demorei pouco mais de 60 segundos para notar a sua presença e temi a hora de lhe dizer bom dia. Disse-lhe como quem espera fugir da palavra e quando me questionou, disse-lhe tudo.

Se meu coração já palpitava de maneira arrítmica antes de lhe dizer bom dia, agora este parecia mexer como as asas de um beija-flor. E se me permite usar a palavra para citação, quando lhe olhei lembrei-me do poema - alguns consideram música, mas o que é a música senão um poema cantado? - você se lembrava deste poema e quando ainda não temia me esbarrar a você, você recitava-o todas as vezes que citávamos o nome do autor.

Você se lembrava da orelha fria e dos segredos de liquidificador, enquanto eu, quando me recordei meses depois desta mesma música, só conseguia lembrar do começo: motivos de mentira e motivos de perdão inexistentes. "A emoção acabou".

O incomodo era mutuo, o sofrimento pode-se dizer que também o era, no entanto cada pessoa sofre de sua forma e de sua maneira nada divina de lágrimas escorridas em desperdício de sons chorosos. Foram diversas camisas molhadas daqueles que não tinham motivos para tê-las.

Senti-me de algum modo iluminado por uma ideia, o que soa um tanto quanto ridículo, mas infelizmente (pela breguice das palavras utilizadas) era real. A ideia era o simples fato que, pela primeira vez em meses de ódio reprimido, podia dar um fim em tudo. Quando digo fim, refiro-me ao sofrimento que estava me mutilando. Não fingi mais o perdão, simplesmente o fiz e sem dificuldades maiores. Algo que, pensava eu, ser tão complicado e quase impossível, soou de maneira natural. Eu o fiz e pronto. Eu o fiz e libertei o que me ardia o peito.

Disse-lhe o que precisava dizer, abracei-o como um selar de acordo, apostei minhas fichas na ilusão que isso não mais ocorra. Esta parte digo ilusão por não poder ter certeza de que caminho tomará as suas próprias escolhas, pois as minhas as conheço de maneira cristalina.

A principio me senti incrivelmente tolo pelo fato de seguir esse caminho. Tolice foi a minha ao pensar isso. Mas é assim que meu corpo e mente agem, toda vez que faço decisões que parecem serem certas - pois sinceramente não há como ter certeza da própria certeza - sinto-me ridículo, depois me sinto bem.

Sinto-me bem, enfim. Sinto-me leve. Sinto-me livre. Agradeço você a isso. Somente.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Crônica da Ofensa

Faz tempo que eu não faço essa coisa de dar explicação, mas lá vai: Esta crônica é um trabalho que tenho que entregar próxima segunda, teoricamente teria que falar de meus defeitos (mesmo que não os encontre) como se fosse outra pessoa falando. Teoricamente os que as pessoas acham de mim. Por isso me foquei no que me lembro do meu primeiro dia de aula, foi o que falaram para mim, os comentários, diria... póstumos? Enfim, foram sobre como já cheguei de maneira rude, minha falta de delicadeza para com as pessoas que geraram comentários de como eu, supostamente, era metida. Por isso, cá está. Não sei se foi real, provavelmente tenho mais erros nos olhos de outros. Mas já explico, não sou tão rude e má quanto pareço, esta normalmente é só a primeira impressão.

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Seus apelidos já foram muitos. Muitos que ela nem mesmo conhecia. Muitos ofensivos, poucos delicados e gentis. É de se entender, sua personalidade forte não era bem vista pela maioria. Juliana era do tipo direta, nada delicada e um tanto quanto estúpida.

Dizia se focar no que lhe importava, que pena que pouco se focou em ser simpática. Focou-se em ser boa no que fazia e provavelmente já sabia que delicadeza não fazia parte de suas qualidades. Quando chegou naquele dia, já duas semanas atrasada, sentou-se ao fundo, esticou as pernas na carteira da frente, jogou seu casaco de lado e não fez questão de cumprimentar ninguém.

Ela estava ali por um motivo, um motivo único: Sair o mais rápido possível. Quando a aula começou, soltou sua língua como a de uma faca afiada e já debatendo temas polêmicos com pessoas que não conhecia. Discordando e não temendo seu ponto de vista incompreendido. Todos a olharam e cochicharam.

Seus cabelos curtos, roupas largadas e sua rigidez com as palavras fizeram sua imagem perfeita e irreal, mas ela não se importou por mudá-la. Saiu do jeito que entrou, pegando seu casaco, vestindo-o e descendo as escadas para evitar a zona do elevador. Conversou com poucos e sorriu para nenhum.

Durante a semana foi assim, mas, aos poucos, bem devagar, começou a conversar, um comentário mais amigável ali, uma piada nada bem feita acolá, uma risada mais solta. Se sua língua continuava afiada, seu bom senso começou a aparecer.

Ela possuía e - para não deixá-la já ao passado - possui um vício que não agrada a ninguém. Em uma nova sociedade onde as drogas mais usadas são aquelas não legalizadas e a falsa moralidade reina entre as bocas desenfreadas, o objeto que se mantinha constantemente dependurado em seus lábios faziam todos se distanciar ainda mais. E se ela possuia esse mal hábito muito antes de conhecer aquelas pessoas onde ela dividia o mesmo ambiente em dias úteis, ela também não fazia questão desta distância.

Enquanto pessoas reclamavam, ela ia para longe, sentava-se em outro canto, terminava seu cigarro e voltava depois de um tempo, até que ela sentisse que o cheiro tinha desaparecido parcialmente de seu hálito e de seu corpo. Pelo menos pela sua educação ninguém tinha o que reclamar.

Enquanto o ano ia passando, as pessoas iam se aproximando. Como da forma que se trata um cachorro não treinado, colocando primeiro a mão para ser cheirada, se aproximando vagarosamente e sorrindo cordialmente, acariciando os pelos e falando besteiras infantis. Mas ela não mordia, o medo era das palavras e dos ataques pseudo-intelectuais-baratos que ela costumava oferecer sem cobrar nada.

As melhoras foram poucas, mas quem a viu e a conheceu soube que o começo foi difícil e as palavras para estes se tornaram doces, pelo menos doces ao seu tom, aquele agridoce que alguns entendem, outros estranham.





quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O falso sequestrado

E é assim que acontece na vida. Você fumando um cigarro na porta de sua faculdade, pensando que está praticamente uma hora atrasada para a aula de Telejornalismo e de repente aparece alguém lhe pedindo ajuda. Imediatamente lhe passa pela cabeça que o indivíduo em questão só vai lhe pedir um cigarro, máximo um isqueiro emprestado. Afinal, é o que normalmente acontece quando você está com um cigarro em mãos.

Não, ele tem uma história. Uma história bem mal contada. Uma história que te faz ter vontade de rir, de fazer um “ahã” e sair de lá para não perder seu tempo. Itajubá deve ser uma cidade engraçada, porque esse indivíduo definitivamente não é normal. “Sou dono da Chanel”, é a primeira frase, “Estou fazendo uma franquia nova da Colcci em São Paulo”, é a segunda.

Como vivemos em um mundo preconceituoso, coisa que não conseguimos de modo algum fugir, a primeira coisa que você faz quando recebe uma resposta (se bem que não houve pergunta) dessas é olhar para a roupa dele. Casaco de moletom, jeans e um tênis que não me lembro a marca. Só com um isqueiro Bic nas mãos. Pescoço totalmente marcado por chupões, arranhão superficial no rosto e cabelo oleoso. Chanel? Colcci? Faz-me rir.

Você não pergunta nada, você só quer sair de lá e ir para sua aula, afinal uma hora de atraso já é muito mais do que o permitido e você nem sabe qual é o prédio que deve ir, o que dirá a classe.

Mas quem disse que para fazer alguém falar é preciso perguntar? Para ele isso não era nada, o que ele queria era falar. O indivíduo conta que foi seqüestrado, espancado, estuprado. Passou dois dias sem ver a luz, sem comer direito e sem nenhum contato com o mundo real. Você acreditaria nessa história se ele não tivesse sido “devolvido ao mundo real” em um bairro de classe média alta.

Não faz sentido. Você lê jornal todos os dias, segue noticiários, vive em sites com notícias. Lê todo santo dia sobre casos de seqüestro, mas nenhum deles diz que a pessoa foi libertada em um bairro de classe média, ou classe alta. A maioria é solto em estradas, ruas sem saída ou com pouco movimento.

Por curiosidade você pergunta sobre a marca no pescoço. “E esses chupões?”. Pergunta simples. Resposta absurda. “Meu gigolô. Pedi pra ele me dar chupões, mas não era pra ele me fazer um colar envolta do pescoço!”. Aquelas marcas têm cara de no máximo um dia, são vermelhas ainda, arroxeadas nas laterais, pretas no meio. Você conhece chupões, já teve que escapar de alguns, passar gelo, pente, pasta de dente e qualquer outra porcaria que alguém lhe garantisse que o chupão sairia.

Você finalmente cai na real, já passou meia hora e você ainda está falando com esse lunático que agora deu de lhe pedir dinheiro. Quer voltar pra Itajubá. E ai você se pergunta, se ele fosse tão rico, de acordo com ele o pai dele era o mais rico de Itajubá, como ainda não tinha ligado a cobrar de qualquer telefone público pedindo ajuda ao pai? “Meu pai viaja muito, não está no Brasil”. Então ligue pra qualquer outra pessoa! O que você está fazendo o dia inteiro na porta dessa universidade?

Amigo estuda aqui. E você se lembra que conhece esse tal amigo, conhece porque ele estuda na sua classe. “Ele é rico também”, e você não acredita mais uma vez. É mentira, você conhece o amigo.

Você se desculpa e diz que tem que ir embora, ele tenta mais uma vez conversar. Você foge, ele deixa. Depois te encontra novamente com a mesma história e 300 reais no bolso que surgiram do nada. Devia estar lá o tempo inteiro e ele só queria comprovar a história inventada, totalmente sem pé nem cabeça que te fez quase perder uma aula.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Tua


Se sou tua, digo. Sou de mais ninguém. Se te pertenço com os laços de aço que me prendem a ti, imaginários, porém reais, laços estes que me seguram em seus braços e me transformam em uma simples garota sem passos. Sigo em direção a tuas amarras, meu amor. Não me importo em perder-me, desde que com certeza saiba que tu me acharás. E me achas, e me enlaças, e me beijas, e me abraças, e me transformas. Transformas-me em tua única mulher, em teu único caminho.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Flerte

Ela tocava em seus cabelos calmamente, colocando mechas rebeldes atrás de sua orelha. Tragava seu cigarro como se beijasse os lábios de uma estátua grega. Sentindo com seus lábios e sugando suavemente, distanciando a nicotina e soltando a fumaça espessa para o alto, como se acariciasse os céus.

Voltava seu olhar diretamente para ele, enquanto este observava seus lábios grossos. Ele sabia qual era seu poder sobre ela e ela sabia de seu domínio estrategicamente planejado.

Estavam jogando uma partida de xadrez. Mas em uma versão mais antiga, aquela dos tempos em que as peças eram os homens. Seus raciocínios pensavam vinte passos à frente, calculando e tramando.

"Suas mãos são macias", ele disse quando a tocou delicadamente com suas mãos quentes. As mãos dela estavam descansando encima de sua perna cruzada, somente esperando por esse contato dele.

Ela não fingia falta de conhecimento nesses contados e isso o seduzia, ele entendia o jogo dela e entendia também que aquele jogo estava sendo posto sem seduções baratas ou desconhecidas. Isso o obrigava a se colocar de corpo e alma naquela brincadeira perigosa.

Ela pouco falava, mas muito demonstrava. Pelo modo que bebericava seu drinque, ou o modo que tragava seu cigarro e o modo que o olhava e que sorria. Quando ele revelou que desejava beijá-la, mais uma vez não foi dito nada além de uma risada sonora.

"O que fazemos a respeito?"

"Nada", pois ela conhecia suas limitações. Mesmo que tivessem conquistado seus objetivos. Não trabalhariam nas ambições impossíveis e destrutivas.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cotidiano

O cigarro é um acompanhante, mesmo que doente, venenoso e terrivelmente enganador. Mas lhe aprisiona e lhe garante sossego por alguns minutos poucos, onde suas tragadas lhe levam para um mundo calmo e onde sua mente vaga sem distância e sem desculpa. Não lhe modifica as atitudes, nem as razões, mas lhe justifica os ataques histéricos e os estresses da vida cotidiana.

Ela tinha acordado com sua garganta ardendo, os 15 cigarros do dia anterior sempre lhe deixavam destruída logo de manhã, sua voz saia rouca e sua respiração lhe doía o pulmão. O café preto forte e sem açúcar facilitou a lubrificação de suas cordas vocais, uma tossida baixa e ela já acendia seu cigarro, dando uma tragada curta, pois a longa lhe ardia e lhe oferecia uma tontura indesejada.

Seus passos foram lerdos até o banheiro e, como não costumava usar roupas de baixo, logo de sentou no acento da privada, com o cigarro entre os dedos e os cotovelos apoiados largamente em suas coxas abertas para que os excrementos saíssem de sua forma natural. Ela de canto olhava seu reflexo no espelho, os cabelos desalinhados e oleosos, as remelas nos olhos e a fumaça do cigarro embaçando a imagem.

Depois de se limpar e jogar a bituca na privada, aproveitou o momento para ligar a água quente do Box, olhava seu rosto de perto no espelho, espremendo aquelas pequenas espinhas que normalmente apareciam de um dia para outro, enquanto a água esquentava e jogava o vapor para fora do Box.

Ela retira a camisa velha que usa, jogando-a na pia, olha seus seios no espelho e os apalpa, sente uma dor e repara que seu período deve estar se aproximando. Vê que seus mamilos endureceram e acha graça, depois chuta para debaixo da pia seus chinelos felpudos e quentes.

Quando entra em seu Box, a água fervente faz seu corpo arrepiar e parecer estar queimando, aquela tortura diária que lhe agrada, seus olhos se fecham e ela permite que a água bata em suas costas, onde as tensões lhe deixam dolorida. Espalha a espuma do sabonete em seu corpo, fazendo desenhos e contas com o dedo no vidro embaçado. Deixa a água absorver as sujeiras e as levar para longe e sai do banheiro.

Olha-se no espelho novamente, jogando os cabelos molhados para trás e acendendo um cigarro nos lábios molhados, dando uma tragada e deixando a água evaporar de seu corpo, depois calmamente espalha o creme corporal, sentindo seu corpo arrepiar pela frieza do produto. Dá mais uma tragada e joga as cinzas na pia, depois deixando a água a levar para longe.

O frio continua a lhe arrepiar a pele, mas ela sai descalça e nua até o quarto, sentando-se na cama e apagando o cigarro no cinzeiro ao lado. Olha para seu livro de cabeceira e abre em qualquer página, lê um poema e o fecha.

Seus glúteos
De glúten
São aglutinados
De glória
Já os meus
Graças a Deus
Têm em cada marca
Uma História

Ela repetiu em voz alto a palavra e se levantou, olhando-se de costas, observando seus próprios glúteos, dando apalpadas e vendo as pequenas marcas de história e sem glória. Repetiu a palavra "glúteos" enquanto procurava sua roupa de baixo, batucando os dedos no móvel, escolhendo uma roupa de baixo que lhe agradasse.

Olhou a janela, vendo o vento, mesmo sem vista e só sentido, tocar-lhe e lhe causar um temor. Abriu o armário e se sentou ao chão, acendeu outro cigarro e se apoiou nas pernas da cadeira, observando suas roupas sem saber o que escolher, com os peitos de fora e sem roupas no corpo além de uma pequena calcinha vermelha.

A cada tragada passava por uma peça, até parar seus olhos em uma e buscá-la. Vestiu-se vagarosamente, murmurando frases, com o cigarro dependurado nos lábios, abotoando a calça jeans e sua camisa, buscou um casaco e um cachecol.

Observou sua bolsa, derrubando cinzas nela e depois descansando o cigarro no cinzeiro. "Chave, carteira, celular, documento, caneta, bloco". Quando checou tudo três vezes, fechou a bolsa e se sentou na cama desarrumada para calçar os sapatos, depois de colocar um em seus pés frios, deu outra tragada e assobiou, depois calçou o outro e repetiu o ato.

Ajeitou seus cabelos para trás novamente e levantou-se, apagando o seu cigarro pelo caminho e caminhando pela casa em busca de café. O forte amargor novamente lhe acordou, café já morno, mas ainda bom. Voltou a checar as chaves na bolsa até resolver sair, batucou um samba na porta do elevador, esperando chegar. Olhou-se no espelho do elevador, lembrando-se tarde de mais de sua maquiagem e de seu perfume.

Cumprimentou o zelador e saiu.
Caminhou e acendeu outro cigarro.
Direcionou-se e esperou o ônibus.
Trabalhou e acendeu cigarros. Voltou para casa tirando sua calcinha e colocando uma camisa velha, jogando-se na cama para sonhar e acordar com o gosto de suas tragadas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Avô

Nunca pensei que ia um dia postar isso aqui, sinceramente considero essa carta tão pessoal que me é difícil compartilhá-la. Mas algo hoje me disse que tenho que fazer isso, quero revelar o que sinto a todos, não importando se estas pessoas me conhecem ou me entendem. Quando escrevi essa carta, tinha acabado de completar 17 anos, o que basicamente nos dá 3 anos com ela guardada sem ser revelá-da. Minto, uma vez a mostrei, mas para meu melhor amigo e uma das poucas pessoas que confio totalmente meus sentimentos confusos.

Não vou dizer o que sempre digo, "espero que gostem", só digo: Espero que entendam.

Abraços.

___

Você se foi fisicamente há mais de 24 anos, o que é irônico, pois só tenho 17 e te sinto sempre, te sentia pelo menos. Lembro que desde criança costumava pedir a Deus, quando ainda era uma criança católica, por sua alma, estranhamente conseguia conversar com você, e acho que tirando hoje, nunca tinha revelado isso a ninguém, já pensou? Iam internar a pobre criança que pensa que conversa com os mortos, um falecido que nunca chegou a conhecer pessoalmente.

Pedia-lhe conselhos, quando precisava de um, lhe perguntava se tal coisa podia acontecer, discutia se tinha feito algo errado, se devia me arrepender, se devia voltar atrás, quando fazia algo errado e não queria assumir, sentava na sala olhando aquela foto em preto e branco sua, você mostrava uma cara brava para mim como se tivesse me dizendo que estava decepcionado, e eu assumia meus erros para voltar a olhar a foto e lhe ver sorrir, e você sempre sorria, escutava me dizer que tinha feito a coisa certa, mesmo que recebesse consequências pelos meus atos.

Quando cresci, sempre o sentia ao meu lado, mesmo que não rezasse mais, era aquele meu lado cético que aparecia sempre e me dizia que aquilo não podia acontecer. Sentia você quando precisava, imaginava seu calor, imaginava como teria sido fantástico poder lhe ver pessoalmente, como falaríamos sobre tudo e todos, como você me mostraria o mundo de outros olhos, poderia escutar seus conselhos vindo de sua boca, não de minha mente.

Depois de um tempo parei de lhe escutar, talvez esse foi o tempo que comecei a errar, errava em ações perante mim, meus amigos, minha família, perdi muita coisa que poderia ter evitado perder. Acho que essa é a fase que todo humano uma vez passa, quando esquece da fé e se junta a sociedade cética, se torna um homem não cruel, mas mais duro, tanto com ele próprio quanto para com os outros.

Quando recuperava minha fé, você voltou a aparecer pouco a pouco, não como antigamente, mas eu sabia que estava lá quando minha mente não aguentava mais e meu corpo desabava. Perdi o chão algumas vezes, mas acho que foi você que me fez olhar para frente e ver que meus problemas não eram tão grandes assim, aguentei muitas coisas, quase perdi o amor de nossas vidas, e tive que suportar isso sem a ajuda de ninguém, além de você, pois todos estavam como eu.

Você sabe como ela é importante para nós, você entende, ela é o que sustenta nossa família, e eu acho que se a perdesse, entraria num buraco que não sei se conseguiria sair. Você sabe que ela ora por você todas as noites, desde que você se foi? Eu achava lindo, como um amor pode ser eterno, mesmo depois da morte, queria saber se ela lhe sentia como eu lhe senti, mas acho que nunca tive coragem de perguntar, foi tão complicado contar aquele sonho.

Foi nesse sonho que pensei que lhe perdi para sempre, eu nunca entendi, mas criei algumas teorias. No sonho você conversava comigo e minha mãe, você falava que sempre olhou por ela e sempre estava lá ao seu lado, para mim você disse que sempre me conheceu, os detalhes são irrelevantes, tirando o Jesus Cristo encima de seu corpo e a Nossa Senhora que eu carregava no peito, o resto não importa muito.

Foi uma despedida, na hora foi linda, mas quando lembrei do sonho me perturbou profundamente. Você se despediu de mim, ou fui eu que lhe abandonei? Será que você agora está no corpo de uma criança em qualquer parte do universo, ou simplesmente não está mais do meu lado, pois alguma coisa aconteceu? Será que eu errei, ou eu não preciso mais de seus conselhos, agora estou por mim mesma? Eu nunca entendi...

Chorei tanto, queria lhe sentir e sentia somente um frio, queria lhe abraçar, mas não conseguia, queria lhe escutar, mas meu coração não respondia a meus chamados por você, eu queria ajuda, mas não a conseguia mais, eu só queria apoio, aquele que eu não sinto ao lado de ninguém, nunca senti, só sentia quando tinha você ao meu lado. O chão desapareceu de meus pés e agora eu tento me levantar, mas é tão complicado sem você.

Não sei se você está na minha mente agora enquanto eu escrevo isso, eu só sinto um aperto, que faz meu coração pular mais forte de desespero, que faz minha garganta engasgar, eu tento não começar a lacrimejar outra vez, quero concluir isso.

Queria somente dizer que lhe amo, sempre lhe amarei, não importa se você nunca mais se lembrará de mim, quando lembrar de sua vida anterior, eu não farei parte da lembrança, isso me magoa.

Quando chorava, meu telefone tocou, como se quisesse me fazer acordar de minha tristeza, dormi um pouco mais calma, mas não esqueci quando acordei. Espero que seja feliz, espero que tenha alguém como eu tive você para lhe guiar pela vida, as coisas se tornam bem mais fáceis quando se escuta o coração.

Te amo para sempre,
Sua neta que lhe conheceu provavelmente mais do que muitas pessoas em sua vida antiga.


quinta-feira, 3 de junho de 2010

A Vila

Ela retirou um dos quatro casacos que usava, ajeitou os cabelos finos para trás da orelha e se desculpou pelo mau jeito que a idade lhe trouxe. Ofereceu uma xícara de café adocicado e se sentou na cadeira da cozinha. Um breve sorriso, uma breve risada e um longo diálogo.

A Vila sem portões e sem cadeados, o piso de pedra com restos de terra e plantas pisadas. O banho frio e a louça suja lavada em uma grande bacia. Eram tantas línguas e sem desculpa de não entender. Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Alemanha.

Seu sotaque era português. E sua simpatia, Brasileira. Ela ofereceu um pedaço de bolo de maracujá para acompanhar o café e um licor para que tudo descesse bem. Tirou mais um casaco e comentou sobre o filho. Nos tempos de moço, um coroinha religioso. Na Vila costumava jogar futebol com o primo da amiga dela. Um velho espanhol reclamava dos barulhos e das bolas chutadas acidentalmente em sua porta.

Quando não havia televisão todos se juntavam para escutar "Varguinhas" no rádio, sem reclamar da Hora do Brasil. Quando havia televisão, todos trepavam no murinho para ver a antiga seleção brasileira jogando.

Humildes foram todos, sem geladeira e só com um fogão de lenha. A comida durava só dois dias, mas custava pouco e isso não era motivo para discórdia. A marmita custava um cruzeiro e era servida em uma tigela de metal funda, o que garantia o almoço e a janta.

A senhora umedeceu os lábios secos e sorriu suavemente, voltou a se levantar e mais uma vez se desculpou pela idade avançada. Contou sem tristezas que recentemente fez uma cirurgia nos olhos e por isso eles ficavam constantemente secos e com uma visão turva. Pegou em sua bolsa os colírios e se virou de costas para aplicá-los. Quando se virou ofereceu mais uma vez o cafezinho, talvez dessa vez com um pouco de leite morno.

A Vila só tinha um banheiro para 15 famílias, o jornal O Cruzeiro servia para limpar, porque para ler, não adiantava de nada, sendo que ninguém por lá sabia ler nem o próprio nome. As pequenas casas só ofereciam quarto e cozinha. Cozinha, como ela mesmo diz, praticamente só a mesa de jantar.

Agora a vida é mais fácil, a geladeira existe, o fogão não é mais a lenha e o banho é de água quente. Mas a graça acabou, a tranca precisa ser verificada todos os dias, porque ladrão não escolhe por dinheiro, e sim pela facilidade que pode ser o assalto. A violência é grande e o preço é maior. Ela pagava só 100 cruzeiros por mês, agora pagaria 300 reais, se ainda morasse na velha Vila.

Nem tem como, a Vila virou apartamento. Tudo um dia tem que se render ao capitalismo e com a vila não foi diferente. A realidade se desfez e virou cimento, mas o sonho continua em mente. As fotos continuam penduradas na parede e as histórias continuam nas línguas dos moradores da antiga Vila.

Desabafo

Eu queria ter a necessidade de me perdoar pelos erros que cometi. Se pelo menos os visse como erros. Queria lhe dizer que o que lhe disse era mentira e que o que senti era confusão. Mas a confusão se instalaria no mesmo momento que lhe dissesse essas palavras. Queria me perguntar por que te amei, mas a única dúvida que me vem é por que não te amei. Queria lhe dizer que você era doce e gentil. Mas quando descubro suas mentiras sem controle, o doce vira amargo e o gentil vira rude.

Queria me livrar de você, isso com certeza necessito fazer. Queria que você sumisse, que você virasse, realmente, poeira cósmica. Talvez que a nossa amizade nunca tivesse acontecido e que você nunca tivesse se apaixonado por mim do jeito que se apaixonou. Queria ter sido rude com você ter lhe dito desde o começo que eu não lhe queria e que essa paixão que vinha de você e parava em mim, sem retribuição, nunca teria uma continuação. Não queria ter lhe tratado bem, ter lhe ajudado ou ter lhe enganado com meus sentimentos atrapalhados.

Queria que nada disso acontecesse, que nada que digo que quero, realmente conseguisse. Queria, porém, que fossemos normais, que fossemos compreensivos com os erros um do outro, sem necessidade desse ódio e desse rancor mal ajustado que faz minha orelha esquerda queimar. Queria que você parasse de me olhar toda vez que passo por você, com seu olhar analítico, querendo saber o que estou fazendo de minha vida e o que faço no mesmo ambiente em que você se encontra.

Queria não ter mais medo de andar pela rua de mãos dadas a outro homem, pelo simples fato de poder te encontrar pelo caminho e magoar mais uma vez seus sentimentos, sendo que neles, supostamente, não me encontro mais. Queria que você me desse a permissão de vida, que me deixasse seguir meus caminhos, que me deixasse amar outros lábios, que me deixasse abraçar outros corpos, que me deixasse falar com outras bocas.

Queria que você entendesse de uma vez por todas que meu amor por você nunca aconteceu, que a paixão passa e que eu precisava respirar. Queria que você entendesse como você me sufocou, como você me algemou, como você me deixou fraca e perdida. Queria que você entendesse que você não era o que eu procurava e que eu precisava somente ficar sozinha.

Queria, finalmente, que você soubesse que meu relacionamento foi feito por um pedido, por saídas enciumadas, por você alcoolizado e por minha vontade de não querer mais vê-lo desse modo. Eu errei em algumas coisas, mas a principal foi ter feito isso para lhe agradar e pensar que com isso começaria a te amar.

Fui ingênua e por isso eu queria lhe pedir perdão, pelo resto não. Não houve mentiras, a não ser as suas, não ouve traições, a não ser as suas, não ouve paixão, a não ser a sua, não ouve amor, a não ser o seu.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Dorian Gray

Relaxa, prometo que não enlouqueci e nem estou em um ataque depressivo! Eu simplesmente fiquei com uma frase em minha cabeça e precisei imediatamente colocar no papel. Talvez seja um pouco perturbador, mas a vida é assim!

Espero que gostem.

Da autora.

___

Sentou-se e respirou fundo. O ar gelado ardia sua garganta misturado com a fumaça do cigarro que prejudicava sua respiração. Sua bebida estava intocada. O gelo trincava. A escuridão invadia a sala e a sombra de seu retrato espantava sua mente.

Minutos a observando sem sair do lugar e cada vez que a olhava, as imagem pareciam sair do espaço, andar até sua cadeira e morder a barra de sua calça. Os olhos desviavam o olhar dos próprios olhos retratados. A visão imaginada o cobria de elementos asquerosos e parecia rasgar sua pele.

O irlandês não podia estar mais certo. Aquela alma que lhe sugava e lhe mostrava todas as faces sem medo de lhe ferir. Aquele corpo imperfeito que lhe dominava e entrava em seu interior, domando suas ações cada vez mais incoerentes.

Há dias não se banhava e ele tinha a leve impressão que até os animais mais sujos tinham nojo de sua nova pessoa. As baratas pareciam fugir de sua presença e os ratos evitavam roer seus sapatos com medo de sua podridão.

Medo era uma palavra fria. Real. Seu corpo tremia pelo medo e pelo sofrimento incompreendido. Era tudo culpa daquele retrato e isso ele não podia negar. Aquela imagem real de seu rosto deformado e imperfeito. Ou perfeito. Perfeito até mais do que se é necessário.

Retrato. Retratar-se. Tratar. O tratamento que não havia cura, só marcas sangrentas pelo caminho. Não havia chão onde pisar e cada passo que ele tentava dar, se sentia sugado pelo chão grudento de um líquido pastoso já bem conhecido por sua pessoa. Esse liquido escorria daquela imagem, como ferimentos incapacitados de serem sarados.

E a faca continuava lá. Estacada, presa e já enferrujada com o tempo. Rasgou o peito de si mesmo, rasgou o coração sem palpitações. Rasgou a alma sem mais caminho. Só o pecado que lhe compreendia.

Se havia sentimentos? Esses ainda existiam. Sentimentos eram confundidos com coisas poderosas e positivas. Mas os sentimentos que pareciam prevalecer não eram positivos, mesmo que poderosos, infinitamente poderosos.

O gelo continuava trincando, mas talvez fosse somente seus dentes. Rachados pelo ódio. O mundo são todos e todos são ele. Ele sentia o ódio por todos. O ódio pela destruição e pela falta dela.

Covardia parecia ser a primeira palavra que subia em seu cérebro quando se indagava sobre a destruição. Aquilo era um castigo para uma pessoa que não acreditava em castigos divinos. Era aquele ser incompreendido que lhe derramava sentimentos. Um pecado para um ateu. Tapas em na face para um cético.

Sua única necessidade fora negada. Por falta de merecimento. Ele usou de sua covardia e de sua coragem para destruir o que tinha construído. Aquilo lhe foi negado. Era obrigado agora a viver uma vida que não se pode oferecer essa palavra. Vida não é vida quando não se quer vivê-la. Vida não é vida quando é negado perdê-la.

A faca enferrujada que estava cravada no peito do retrato, se afundava em seu próprio corpo e não poderia nunca ser retirada. O que lhe era considerado de mais asqueroso, era somente ele. Ele devia aceitar, aceitar o que lhe foi dado, porque tudo foi merecido, aceitar o que lhe foi negado, porque tudo foi perdido. Mas o aceitar parecia longe de sua realidade. Essa não era mais existente.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Televisão

Ele zapeava a televisão, eram 200 canais e nada útil para se ver em uma tarde de segunda-feira. The History Channel, uma história sobre homens de preto, óvnis que matam pessoas. conspiração e fim do mundo. Tudo que ele queria era o fim daquele dia, só isso, o mundo podia facilmente esperar. Ele queria aquela máquina que faz tudo, qual era o nome dela mesmo? Juicer alguma coisa. Ela devia ser útil, rala, corta, espreme, bate. Aquele homem que falava na televisão tinha uma voz engraçada. Ele queria ter pagado o Playboy TV, ou aquele outro canal de luta. Talvez assim pelo menos ele se divertia de algum modo.

Sua televisão parou no TV Coréia. Quem ia ver esse canal? Claro, e o canal nem ao menos funcionava. E quem vai pagar a Net para ver a TV Coréia? Aquilo não fazia sentido. "Por favor, quero a Playboy TV, TV Combate e o TV Coréia". Tinha outro canal que parecia que eles falavam alemão, ou holandês, ou qualquer língua que ele não fazia ideia do que falavam. Era um homem careca, de óculos e terno e outro que parecia o doutor que falava sobre sexo no GNT. Não, e não era a velhinha tarada que passava de madrugada na GNT. Sue. Ela era bem tarada.

Tinha uma mulher bonita apresentando culinária no canal italiano. Mas ele passou rapidamente, já era hora do almoço e ele não estava com saco de pegar algo para comer. No SciFi Channel passava Star Trek, a série tinha sua idade e ainda passava. Ele sempre se perguntou quem assistia. Todo mundo já deve ter visto todos os episódios disso e aquilo era muito chato. Muito chato. Ele se arrependeu de novo de não ter comprado o canal Playboy.

Se apagasse a televisão, teria que trabalhar. Preferia o tédio da televisão, definitivamente. Pensou novamente naquele juicer. O programa dizia que cortava tudo. Devia ser útil. Era caro e ele não ia comprar frutas e legumes para experimentar o produto. Ele nem ao menos sabia cozinhar. A fome bateu de novo. O telefone estava longe e a preguiça era maior. Dane-se.

Talvez ele devesse fazer um regime. Olhou para sua barriga dobrada, pança. Bateu um dedo nela. Era engraçado. Ela parecia gelatina. Bloun. Mexia. Era a cerveja. Talvez ele devesse parar de beber cerveja. A cerveja tinha acabado, ele teria que sair para comprar. O miojo também e o feijão pré-pronto também.

Regime era uma boa opção. Dizem que se você para de comer, você continua engordando. Era como se seu corpo encarasse aquilo como uma mensagem de falta de alimento e lhe desse a gordura guardada para você ficar mais forte. Ele tinha estudado isso uma vez, mas não era assim. Se parar de comer engordasse, os caras da Somália seriam tudo gordinhos. Que mente sacana, cara. Eu vou para o inferno. Mas se você é ateu, não tem essa, certo?

Aquele pensamento lhe deu fome de novo. Ele viu a propaganda sobre um produto para filtrar a água da pia. Aquilo o lembrou que ele ainda não tinha tomado banho. Será que ele pegou a conta de gás? Pegar, ele pegou. Pagar é outra história. Ele tinha que comprar cigarro também e isqueiro. O gás do isqueiro acabou. Isqueiros Bic não são mais como antigamente! Acabou em um mês. Antes ele ficava com o mesmo isqueiro durante meses.

Por que todo mundo começa a pensar em mudar a vida em uma segunda-feira? Teoricamente o a semana começava no domingo. Ninguém pensa em mudar a vida no domingo. Domingo é dia nulo. Faustão. Faustão tinha feito uma cirurgia para ficar magro. Se até o Faustão fez isso, talvez ele realmente devesse fazer regime. Será que o Faustão está usando aquelas cintas engraçadas? Aquilo deve feder, o dia inteiro com a mesma cinta, 30ºC na rua. Banha e suor.

A Net saiu do ar. Nem a Globo funciona. Deve estar passando Chaves no SBT. Ele lembrou da matéria sobre o Quico que leu no Estadão essa manhã. Aquele cara tava velho, as bochechas dele estavam parecendo de um cachorro. Por que esses caras nunca sabem a hora de parar? Tudo que ele queria era a aposentadoria e tudo que o Quico fazia era trabalhar. Gente doida.

Na matéria falava de cachorro quente. Algo como cinco reais para um cachorro quente. Muito caro. Mas agora ele pagava. A fome estava apertando. Ele olhou para os pés. Tinha que levantar. vai, coragem, pelo menos até a geladeira, deve ter um macarrão velho do dia anterior com um molho já estragado. Ele se levantou devagar, aquele gemido de saco cheio. Passos curtos, corpo para baixo. Gravidade é um saco, parece que te joga no chão. A barriga fazia aquele barulho engraçado a cada passo.

Ele desligou a TV. Energia era caro. Mais tarde ele ligaria para o canal de compras. Talvez um juicer fosse um incentivo para um regime. Tem aqueles produtos de exercício também. Além disso, ele podia fingir que não deu certo e pedir o dinheiro de volta depois. A banha dele era mais do que a prova de que os produtos não funcionaram. Boa ideia.