quarta-feira, 22 de junho de 2011

Oitenta e nove anos

Sua mão estava fria e magra, unia-a junto as minhas e olhava compulsivamente para a pulseira de internação enquanto escutava o monólogo médico. O choque apareceu como um frio na espinha, senti meu corpo endurecer e minha pupila dilatar. Olhei-a e sorri suavemente, não queria demonstrar preocupação e torcia para que a velhice a impedisse de escutar a notícia.  Mantive-me firme, minhas pernas se transformaram em gelatina e controlava a pressão para que não desabasse e não causasse alvoroço. Mil novecentos e vinte e dois. Oitenta e nove anos comemorados no dia quatro do mês quatro – abril. Ironicamente em seu registro constava que ela havia nascido no dia vinte e dois do mês quatro. Engano preguiçoso. Meu bisavô displicente a registrou somente dezoito dias após seu nascimento e por isso o erro ficou tão evidente.

Isso não importa. Ela sempre sorri quando conta a história, na realidade é bem provável que sinta um certo orgulho. Todos precisam de histórias para contar, ela tem diversas e faz questão de compartilhá-las a todo momento e com qualquer pessoa. O novo foi o acidente. “Mas eu não acredito!”, exclamava enquanto contava pela vigésima vez a história de seu tombo. “Uma coisa tão ridícula, estava me sentando na cama – na cama, acredita? – quando escorreguei, pronto!”. Suspirei a mesma frase que repetia em minha mente a todo momento, “quando Deus quer, ele faz”. Não importa a seriedade do caso, não importa a gravidade do acidente, conheci gente que quase morreu por conta de uma espinha e outro que foi atropelado por um ônibus e em duas semanas já estava sem arranhões. São casos, e todos os casos são sérios.

A cirurgia deveria ser rápida, duas horas no máximo. Se o plano de saúde permitisse, em um dia ela estaria realizando a operação e em quatro já estaria em casa. O transporte para outro hospital foi um pouco mais complicado. Não poderia sentar, o fêmur não permitia muito movimento, deitou-se no banco traseiro com a ajuda de enfermeiros e recostou sua coluna e sua cabeça em meu peitoral. Acariciava seus cabelos e lhe beijava a testa de tempos em tempos, enquanto outra mão segurava firme em sua mão. Esquentei seu corpo com o calor do meu e tentei de todos os modos possíveis transmitir minhas forças e minhas energias a ela. “Está tão bom ficar aqui” confessou-me quando alcançávamos o destino final.

Sonolenta, aconchegaram-na na maca e em pouco tempo ela dormia. Com um olho aberto e o rosto não era de uma pessoa que descansava e sim de uma pessoa que dormiu de tanta dor. Observei-a dormir por um tempo enquanto a burocracia rolava no hospital. Sentava-me desconfortavelmente em uma cadeira ao lado dela e voltei meu olhar ao nada. Minha respiração era controlada e minha mente evaporava. Pensava em orações e em rezas. Não me lembrava de nenhuma, o desespero tentava me dominar e a luta estava tão difícil que minha cabeça havia entrado em modo de segurança. Controlei o choro e suspirei. Tudo iria terminar bem, tudo tinha que terminar bem. Repetia a mim mesma diversas vezes, como um mantra pessoal: “não a permita partir neste hospital, não a permita partir neste hospital”.  

Tento há tempos compreender o fino trajeto entre a vida e a morte. Oitenta e nove anos, afinal. Sei que em breve não poderei mais controlar a situação, mas não agora e não deste modo. Quando finalmente o médico responsável retornou com as papeladas já assinadas, levamo-la ao quarto. Em pouco tempo me encontrava sozinha com ela, segurei novamente em sua mão e a cobri, dei-lhe boa noite e tentei descansar. As lágrimas tentaram correr, as impedi a tempo. Médicos e enfermeiros iam e vinham, traziam coisas, remédios e procedimentos. Dormi duas horas, acordei com seus gemidos. A dor voltara após o fim do medicamento, o calor a obrigou a me pedir que retirasse as cobertas. Ajeitei sua cabeça no travesseiro e voltei a me recostar. Fechei os olhos por meia hora, tempo suficiente para que o médico aparecesse informando as novidades. Já estávamos em tempo de café da manhã. Obriguei-a a se alimentar, com dificuldade tomou meio copo de café com leite adocicado. Não ia ao banheiro, não reclamava, não comia. Bateria de exames e locomoção, lágrimas e desespero de sua filha mais nova. Banho complicado e situações delicadas.

Quando me permitiam, eu empurrava a poltrona verde para perto de sua cama, abaixava uma grade de segurança e apoiava minha cabeça perto de seu colo, ainda com sua mão junto a minha. Infelizmente a todo momento algo me impedia de manter aquela posição. Se não eram os enfermeiros, era a moça da limpeza, ou então o próprio médico. Com muita relutância fui embora, meu corpo pedia ajuda. Doía-me tudo – pés, pernas, ombros, pescoço, cabeça e principalmente a mente. Sentei-me no banco traseiro do táxi e enfrentei o trânsito caótico de uma tarde paulistana, suspirava olhando os prédios, pensando em pessoas, pensando somente como seria bom estar no meu lugar favorito neste momento. A cama dele e o colo dele, com as suas mãos em minha cabeça me fazendo cafuné e seus beijos em minha testa. Pensava, ou melhor, tinha certeza que ele seria o único a me acalmar neste momento. Não o via desde o fim de semana e só alcançava contato por sua voz. Voltei pensando nele, comi pensando nele.

Finalmente me permiti as lágrimas controladas. Os soluços se tornavam cada vez mais alto enquanto a água quente jorrava em minhas costas. Tapava minha boca, olhava para o além e orava com todas as minhas forças. Joguei-me na cama macia de meu quarto do mesmo modo que saí do banho, colocando somente a toalha úmida em minha cabeça para não prejudicar muito meu travesseiro. Cobri-me e me abracei, tentei imaginá-lo lá, me abraçando e me protegendo. Do mesmo modo que faz todos os fins de semana quando o tenho só para mim. Infelizmente minha mente não permitia bons pensamentos. Em pouco tempo imagens do fim dos oitenta e nove anos apareceram em minha mente, inundando-me de medo e de sofrimento. Os soluços eram tão altos que tapava minha boca e mordia a toalha com força. Senti como se um rombo aparecesse em meu peito. 

Tenho isso todos os meses. É como se eu tentasse decifrar qual seria minha reação. Já imaginei diversas cenas e diversas situações. Todas envolvem choros desesperados e depressão assustadora. Às vezes acordo no meio da noite chorando, às vezes mal consigo dormir porque não paro de chorar. Não quero pensar mais. Não quero mais que minha mente funcione. Queria que tudo aquilo acabasse. Sentia meu corpo quente e meus olhos secos. A ânsia aparecia a cada soluço mais alto, a cada grito desesperado que soltava no meio daquele quarto escuro. Estava sozinha naquela casa e há quilômetros de distância dela. Onde ela estava deitada, sem poder se mexer, repetindo sua história para todos que aparecessem. Orei até dormir. Chorei até dormir.