quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cotidiano

O cigarro é um acompanhante, mesmo que doente, venenoso e terrivelmente enganador. Mas lhe aprisiona e lhe garante sossego por alguns minutos poucos, onde suas tragadas lhe levam para um mundo calmo e onde sua mente vaga sem distância e sem desculpa. Não lhe modifica as atitudes, nem as razões, mas lhe justifica os ataques histéricos e os estresses da vida cotidiana.

Ela tinha acordado com sua garganta ardendo, os 15 cigarros do dia anterior sempre lhe deixavam destruída logo de manhã, sua voz saia rouca e sua respiração lhe doía o pulmão. O café preto forte e sem açúcar facilitou a lubrificação de suas cordas vocais, uma tossida baixa e ela já acendia seu cigarro, dando uma tragada curta, pois a longa lhe ardia e lhe oferecia uma tontura indesejada.

Seus passos foram lerdos até o banheiro e, como não costumava usar roupas de baixo, logo de sentou no acento da privada, com o cigarro entre os dedos e os cotovelos apoiados largamente em suas coxas abertas para que os excrementos saíssem de sua forma natural. Ela de canto olhava seu reflexo no espelho, os cabelos desalinhados e oleosos, as remelas nos olhos e a fumaça do cigarro embaçando a imagem.

Depois de se limpar e jogar a bituca na privada, aproveitou o momento para ligar a água quente do Box, olhava seu rosto de perto no espelho, espremendo aquelas pequenas espinhas que normalmente apareciam de um dia para outro, enquanto a água esquentava e jogava o vapor para fora do Box.

Ela retira a camisa velha que usa, jogando-a na pia, olha seus seios no espelho e os apalpa, sente uma dor e repara que seu período deve estar se aproximando. Vê que seus mamilos endureceram e acha graça, depois chuta para debaixo da pia seus chinelos felpudos e quentes.

Quando entra em seu Box, a água fervente faz seu corpo arrepiar e parecer estar queimando, aquela tortura diária que lhe agrada, seus olhos se fecham e ela permite que a água bata em suas costas, onde as tensões lhe deixam dolorida. Espalha a espuma do sabonete em seu corpo, fazendo desenhos e contas com o dedo no vidro embaçado. Deixa a água absorver as sujeiras e as levar para longe e sai do banheiro.

Olha-se no espelho novamente, jogando os cabelos molhados para trás e acendendo um cigarro nos lábios molhados, dando uma tragada e deixando a água evaporar de seu corpo, depois calmamente espalha o creme corporal, sentindo seu corpo arrepiar pela frieza do produto. Dá mais uma tragada e joga as cinzas na pia, depois deixando a água a levar para longe.

O frio continua a lhe arrepiar a pele, mas ela sai descalça e nua até o quarto, sentando-se na cama e apagando o cigarro no cinzeiro ao lado. Olha para seu livro de cabeceira e abre em qualquer página, lê um poema e o fecha.

Seus glúteos
De glúten
São aglutinados
De glória
Já os meus
Graças a Deus
Têm em cada marca
Uma História

Ela repetiu em voz alto a palavra e se levantou, olhando-se de costas, observando seus próprios glúteos, dando apalpadas e vendo as pequenas marcas de história e sem glória. Repetiu a palavra "glúteos" enquanto procurava sua roupa de baixo, batucando os dedos no móvel, escolhendo uma roupa de baixo que lhe agradasse.

Olhou a janela, vendo o vento, mesmo sem vista e só sentido, tocar-lhe e lhe causar um temor. Abriu o armário e se sentou ao chão, acendeu outro cigarro e se apoiou nas pernas da cadeira, observando suas roupas sem saber o que escolher, com os peitos de fora e sem roupas no corpo além de uma pequena calcinha vermelha.

A cada tragada passava por uma peça, até parar seus olhos em uma e buscá-la. Vestiu-se vagarosamente, murmurando frases, com o cigarro dependurado nos lábios, abotoando a calça jeans e sua camisa, buscou um casaco e um cachecol.

Observou sua bolsa, derrubando cinzas nela e depois descansando o cigarro no cinzeiro. "Chave, carteira, celular, documento, caneta, bloco". Quando checou tudo três vezes, fechou a bolsa e se sentou na cama desarrumada para calçar os sapatos, depois de colocar um em seus pés frios, deu outra tragada e assobiou, depois calçou o outro e repetiu o ato.

Ajeitou seus cabelos para trás novamente e levantou-se, apagando o seu cigarro pelo caminho e caminhando pela casa em busca de café. O forte amargor novamente lhe acordou, café já morno, mas ainda bom. Voltou a checar as chaves na bolsa até resolver sair, batucou um samba na porta do elevador, esperando chegar. Olhou-se no espelho do elevador, lembrando-se tarde de mais de sua maquiagem e de seu perfume.

Cumprimentou o zelador e saiu.
Caminhou e acendeu outro cigarro.
Direcionou-se e esperou o ônibus.
Trabalhou e acendeu cigarros. Voltou para casa tirando sua calcinha e colocando uma camisa velha, jogando-se na cama para sonhar e acordar com o gosto de suas tragadas.

Um comentário:

Estevão de Almeida disse...

um mergulho no universo feminino! quase que constrangedor para quem le, como se flagrasse sem querer uma amiga em um momento de intimidade.
adorei a parte do excremento! hahahaha